29.10.07

UM PUEMA

Anoitecer
(Carlos Drummond de Andrade)

É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo

É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz - morte - mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.


O poema está no livro A Rosa do Povo (José Olympio, 1945), escrito por Drummond durante a Segunda Guerra Mundial, o que faz dele um dos livros mais pessimistas do poeta. Lindo.

José Miguel Wisnik, grande compositor e professor de Teoria Literária da USP, musicou o poema e o incluiu no seu disco "Pérolas aos Poucos", de 2003. Aqui você pode conferir o resultado.

Around recomenda também a leitura do artigo de Liliana Harb Bollos.

18.10.07

DEU SAMBA



Os militares podiam mandar no Brasil durante os anos de chumbo, mas na TV quem ditava as regras era Flávio Cavalcanti, um apresentador franzino porém de porte napoleônico. Falo das décadas de 1960/70, quando a TV Tupi era a maior rede brasileira e Silvio Santos não passava de um empregado de Roberto Marinho.

Foi Flávio Cavalcanti quem criou o modelo de programa de auditório que conhecemos hoje, incluindo a bancada de jurados composta por personagens caricatos e antagônicos. Antes da existência do Fantástico, era ele quem pautava as conversas da família brasileira. O aparesentador gozava de um prestígio imenso.

"Isso deu samba" era um dos quadros do seu programa. Flávio levava ao palco um popular cuja tarefa se resumia a contar uma história pessoal. Inspirados na desventura do participante, dois compositores consagrados deveriam fazer um samba em poucos minutos. Ao final da composição, um intérprete o cantaria ali mesmo, ao vivo, e o júri escolheria a melhor canção.

Um senhor de cara engraça e voz idem conta sua história: "Seu Flávio, meu nome é Alcides, mas meu apelido é 'Quindim de mulher'. Eu não sei por que toda mulher que olha pra mim se liga e gama. É loura, morena, é furta-cor... todas!"

Na disputa, os inacreditáveis Adelino Moreira e Lupicinio rodrigues.

Flávio dá uma ordem. A competição começa. Adelino põe-se a cantar num tom claudicante: "Não sei o que eu tenho / Não sei o que eu faço/ O meu 'esquindim' só meu causa embaraço / Mulher que me olha quer me dar o nó / Gama logo por mim e me chama xodó". Emílio Santiago, logo atrás, galante como um astro Blaxploitation, observa atento. A cantora Cláudia Regina dá continuidade.

No júri, a jornalista Marisa Raja, de cabelos curtíssimos como Elis Regina, entre a névoa branca que escapa do cigarro do maestro Erlon Chaves, demonstra real interesse. Maysa, séria, de sobrancelhas finíssimas quase inexistentes, parece entediada. Fernando Lobo rói a unha e, súbito, quebra a munheca.

Entra Lupicínio Rodrigues, casaquinho de lã e óculos de armação preta como os de Jânio Quadros. Chega de mansinho, fazendo sinal para diminuir o andamento da música. Não adianta. No primeiro verso, perde o fio da meada. Pára, retoma o fôlego e recomeça:

"Meu nome é Alcides / Mas todos me chamam Quindim de mulher / Não sei o que tenho que moça e velha / Loira e morena e mulata me quer".

Emílio Santiago, exibindo um sorriso tão alvo quanto a camisa que veste, aguarda sua vez de entrar. É ele quem defende a música feita por Lupicínio minutos antes. Abraçando o compositor, chega soltando o gogó: "De paixão por mim / duas já foram parar no hospício / outras fizeram até sacrifício / de ir pra a cadeia e pro cemitério".

O radialista Humberto Reis dá um trago profundo no cigarro, o resto do júri se encanta com a música e a platéia não se contém. Aplausos entusiasmados. Maysa, olhos semicerrados, um vidro inteiro de cajal na borda das pálpebras, observa séria com o cigarro ardendo entre as falanges. Fumar, como se nota, era elegante. Emílio continua, cheio de ginga, a sua interpretação do samba instantâneo. A câmera flagra Maysa esboçando um sorriso rápido, a diva parece ter se rendido à composição de Lupicínio. Mais aplausos.

Fim da apresentação. Flávio Cavalcanti se antecipa: "Assim nasceram dois grandes sambas hoje", e joga em seguida a decisão para os jurados.

Uma disputa finíssima.

O vencedor? É só clicar aqui.

14.10.07

VÍDEO PREMIADO

Nós aqui do WeShow nos dedicamos diariamente a buscar na internet os melhores e mais interessantes vídeos do mundo, em mais de 200 assuntos diferentes. O seu vídeo Nelson Rodrigues - Otto Lara Resende foi selecionado dentre milhares como TOP 10 outubro em Artes > Literatura & Pensamento e está concorrendo a MELHOR VÍDEO deste canal.


O vídeo em questão é a entrevista do Nelson Rodrigues feita pelo Otto Lara Resende que mandei pro YouTube e postei aqui no blog e no Lounge simultaneamente no início do ano.

Então, é natural que eu peça seu o voto.

8.10.07

NA ELEGÂNCIA

“Pode deixar a porta aberta, aqui todo mundo me respeita”. A voz veio lá de dentro, enquanto o bamba deitava os jornais do dia na grande mesa de madeira coberta de tecidos finos. O relógio marcava 10h30 da manhã quando entramos no atelier de Walter Alfaiate, no oitavo andar de um prédio em Copacabana, sobre um centro comercial popular. “Isso é um verdadeiro zoológico, vocês precisam ver as figuras que moram aqui”, diria o compositor em seguida, referindo-se à “fauna” de tipos cariocas que circula diariamente pelo edifício.

Para continuar lendo a matéria com o Walter Alfaiate, que fiz para o site O Samba, clique aqui.


UPDATE: o jornal O Dia Online repercutiu. Viva!

3.10.07

ANATOMIA DE UM PAPO

- Olá, como vai?
- Td blz, mlk!!!! - você devolve na lata, riscando exclamações como quem acende fósforos.

Eu, olhos fanzidos, pés de galinha bem marcados, não entendo. Torno a perguntar, a veia roxa saltando da têmpora esquerda. Súbito, você lasca um lírico "uhauhauhauhauha" e antes que eu levante as duas sobrancelhas como gato escaldado, completa misterioso: "rsrrsrsrsrsrs". Sigo o vinco da testa com o indicador, ajeito os óculos sobre o nariz, coço a barba, fios que insistem no queixo... Impaciente, você arremata com o derradeiro "flw, lsk t+!!!!"

Sou do tempo em que se falava pelos cotovelos.

Não pelos dedos.