21.12.05

COM A CABEÇA LÁ LONGE

Vou à cozinha, que fica no segundo pavimento de uma casa de três pequenos andares, corto um pedaço generoso de meat loaf e o coloco dentro do bagel dourado (o pão judeu tradicional de Israel, muito popular em Nova Iorque as well) que já espera crispado dentro do forninho elétrico. A primeira mordida é acompanhada por um movimento involuntário das pálpebras sobre meus olhos, que se fecham em sincronia com a mandíbula. Produzo um escuro artificial como que para fixar o sabor daquele sanduíche, que, apesar de extremamente simples, é motivo de grande prazer. Um gole no fruit punch – uma bebida menos nobre, de um vermelho artificial de sangue velho, com gosto de bala barata e muito popular entre as crianças –, e invisto mais uma vez os dentes contra o sanduíche, agora de olhos abertos (só se produz uma única vez o êxtase da primeira mordida. Cerrar os olhos novamente seria em vão). Então vou à janela, que fica ao lado fogão, afasto a cortina ensebada de gordura e avisto o bairro coberto por um manto suave e muito branco. Foi assim que vi neve pela primeira vez. Era Natal.

Estava só. Quero dizer, longe da família. Dos queridos. Da pátria, esta menos querida, mas ainda assim digna de saudade. Na nova casa onde morava, no entanto, não era desprovido de companhia. Josh e Sean jogavam videogame na sala, um jogo qualquer de futebol. Keiko, uma japonesinha de Tóquio que estudava moda na Fashion Avenue, com seu jeito tímido do oriente, me chamava lá de dentro com o sotaque mais lindo que um homem poderia ouvir naquela noite branca. Sophie, uma francesa cujos cabelos pretos contrastavam com a pele alva, desfazia um cubano e dava forma, com marijuana, a um blunt generoso. Na cozinha, eu observava, inerte, os flocos de neve que cobriam como uma renda as copas das árvores que enfeitavam o bairro. Keiko me chamou mais uma vez, e a sua voz doce me arrastou até o quarto upstairs. Deu-me um origami, disse que era um tucano – nada mais brasileiro! – e, sem que eu pudesse agradecer, roubou-me um beijo. Longo. Sincero. Foi assim que fiquei pela primeira vez com uma estrangeira. Era Natal.

Naquela noite, em meu exílio além-mar, após cearmos, trocamos presentes como manda a boa tradição natalina. Aquele seria um ano de muitas saudades e poucas trocas – que se dariam somente entre nós cinco - mas de muitos sotaques, por vezes incompreensíveis. Por outras tantas, charmosíssimos.

Volto aos trópicos. Através da janela, em vez de neve, vejo um céu nublado (de um cinza pesado) e uma chuva fina que cai de maneira insistente há dias – chuva de derrubar barraco, como costuma dizer minha avó. Dezembro chega ao fim novamente. Arrogante. Feio. Chuvoso e desagradável. Os últimos dias do ano me caem sobre a cabeça como granizos violentos cuspidos por um São Pedro raivoso. Penso em parar o relógio. O único que tenho, no entanto, é o do celular, e sobre este meus esforços são inúteis – é automático. Raios!

Lá fora a cidade se mostra viva. São inúmeras as lampadinhas que enfeitam as árvores capengas do centro. Algumas têm as suas folhas murchas de pragas cobertas por uma espécie de algodão ou outro material que se esforça em parecer neve. Um moleque de barriga inchada, sandália havaiana num pé e o outro descalço, cabelo sarará que acusa desnutrição, brinca de puxar a roupa de um papai Noel raquítico que, sorumbático, arrasta os pés pelas confusas ruas atulhadas de gente. Em alguns dias será Natal. Mais uma vez.

Desta feita passarei com a família. A ceia será farta, como já é tradicional em casa. Bebida não faltará, e das boas. Nada de fruit punch. Desta vez os vinhos serão diversos, coisa fina da “adega” do coroa. Por falar no velho, este vai tocar várias de suas composições no piano que jaz na sala de casa: “Bicho, essa foi o Cristóvão Bastos que gravou, presta atenção!”. A velha, não duvido, exibirá a neta com orgulho: “Olha como dança direitinho no ritmo da música”. Uma irmã ligará de só Deus sabe que ponto do mundo. Falará com os pais – calou-se faz tempo para os irmãos. Fingirá, mais uma vez, que não os tem. O papo voltará à sala. Apesar do esforço de todos para mantê-lo longe do ordinário, não será muito diferente do que estará acontecendo na casa ao lado. E ao lado. E ao lado...

O velho, ao piano, despejará pela noite abafada as suas composições, preenchendo com música o vazio existencial.

Pensarei em Keiko.

5 comentários:

Anônimo disse...

Eu também me apaixonei pela Keiko.. E se Natal é época de esperanças, me deixou esperançosa um relato tão delicado e sincero sobre o Natal oriental.

Anônimo disse...

Keiko deveria ser uma graça. Rapaz, pelo menos seu pai toca algumas coisa no piano. Lá em casa, eu tenho que ouvir o cd de temas natalinos da Simone em toda ceia de Natal. É de deixar qualquer um louco.

Anônimo disse...

"...preenchendo com música o vazio existencial."
hahahhahahahhahahahahhahahahahha
Você é um fenômeno!!

Anônimo disse...

valeu *******
uma abraço pra vc tb
feliz 2006

Anônimo disse...

Keiko hein, gostei!
É, aqui em casa além da mesa farta, tenho nos ouvidos Simone em versão natalina all the time tbm! Medo!