18.10.07

DEU SAMBA



Os militares podiam mandar no Brasil durante os anos de chumbo, mas na TV quem ditava as regras era Flávio Cavalcanti, um apresentador franzino porém de porte napoleônico. Falo das décadas de 1960/70, quando a TV Tupi era a maior rede brasileira e Silvio Santos não passava de um empregado de Roberto Marinho.

Foi Flávio Cavalcanti quem criou o modelo de programa de auditório que conhecemos hoje, incluindo a bancada de jurados composta por personagens caricatos e antagônicos. Antes da existência do Fantástico, era ele quem pautava as conversas da família brasileira. O aparesentador gozava de um prestígio imenso.

"Isso deu samba" era um dos quadros do seu programa. Flávio levava ao palco um popular cuja tarefa se resumia a contar uma história pessoal. Inspirados na desventura do participante, dois compositores consagrados deveriam fazer um samba em poucos minutos. Ao final da composição, um intérprete o cantaria ali mesmo, ao vivo, e o júri escolheria a melhor canção.

Um senhor de cara engraça e voz idem conta sua história: "Seu Flávio, meu nome é Alcides, mas meu apelido é 'Quindim de mulher'. Eu não sei por que toda mulher que olha pra mim se liga e gama. É loura, morena, é furta-cor... todas!"

Na disputa, os inacreditáveis Adelino Moreira e Lupicinio rodrigues.

Flávio dá uma ordem. A competição começa. Adelino põe-se a cantar num tom claudicante: "Não sei o que eu tenho / Não sei o que eu faço/ O meu 'esquindim' só meu causa embaraço / Mulher que me olha quer me dar o nó / Gama logo por mim e me chama xodó". Emílio Santiago, logo atrás, galante como um astro Blaxploitation, observa atento. A cantora Cláudia Regina dá continuidade.

No júri, a jornalista Marisa Raja, de cabelos curtíssimos como Elis Regina, entre a névoa branca que escapa do cigarro do maestro Erlon Chaves, demonstra real interesse. Maysa, séria, de sobrancelhas finíssimas quase inexistentes, parece entediada. Fernando Lobo rói a unha e, súbito, quebra a munheca.

Entra Lupicínio Rodrigues, casaquinho de lã e óculos de armação preta como os de Jânio Quadros. Chega de mansinho, fazendo sinal para diminuir o andamento da música. Não adianta. No primeiro verso, perde o fio da meada. Pára, retoma o fôlego e recomeça:

"Meu nome é Alcides / Mas todos me chamam Quindim de mulher / Não sei o que tenho que moça e velha / Loira e morena e mulata me quer".

Emílio Santiago, exibindo um sorriso tão alvo quanto a camisa que veste, aguarda sua vez de entrar. É ele quem defende a música feita por Lupicínio minutos antes. Abraçando o compositor, chega soltando o gogó: "De paixão por mim / duas já foram parar no hospício / outras fizeram até sacrifício / de ir pra a cadeia e pro cemitério".

O radialista Humberto Reis dá um trago profundo no cigarro, o resto do júri se encanta com a música e a platéia não se contém. Aplausos entusiasmados. Maysa, olhos semicerrados, um vidro inteiro de cajal na borda das pálpebras, observa séria com o cigarro ardendo entre as falanges. Fumar, como se nota, era elegante. Emílio continua, cheio de ginga, a sua interpretação do samba instantâneo. A câmera flagra Maysa esboçando um sorriso rápido, a diva parece ter se rendido à composição de Lupicínio. Mais aplausos.

Fim da apresentação. Flávio Cavalcanti se antecipa: "Assim nasceram dois grandes sambas hoje", e joga em seguida a decisão para os jurados.

Uma disputa finíssima.

O vencedor? É só clicar aqui.

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